Eles são sobreviventes. Num mercado de trabalho cada vez mais dependente de tecnologia apurada, informática e robotização, contribuem para engrossar a parcela que fica a margem das máquinas modernas. Conjugam em suas rotinas verbos revestidos de passado e nostalgia: coser uma roupa, assear a barba, pregar um botão, engraxar um calçado, parir um rebento. E, apesar de não ocuparem espaço nos grandes centros comerciais, ainda resistem ao processo natural de extinção pelo qual passam profissões de tempos em tempos. Em cidades de menor porte, no interior do Estado, ou mesmo no centro de Porto Alegre, a paisagem relega um modesto quinhão a barbeiros, sapateiros, alfaiates, parteiras, engraxates e outros trabalhadores munidos de ferramentas igualmente raras: navalha, dedal, fita métrica, esquadro; e o principal: uma dose cavalar de paixão pelo labor há tanto aprendido.
O alfaiate José Nunes carrega consigo há quase 40 anos essa marca. Natural de Araranguá, Santa Catarina, na adolescência foi iniciado no manejo das vestes. A família pegara a estrada rumo ao sul em busca de melhores ares, e alojara-se numa área rural, próxima a Guaíba – cidade a 30 quilômetros da capital gaúcha. Como o irmão mais velho, Guilherme, começara a trabalhar de alfaiate na nova terra, Nunes herdou dele a prática.
– É uma profissão passada de pai pra filho. Como eram os dentistas antigamente. Os pais ensinavam aos filhos. Como eu tive um irmão mais velho alfaiate, e ele precisava de um auxiliar, me trouxe do interior para aprender – relembra o senhor de cabelos brancos e pequenos vincos que ladeiam os olhos escondidos pelos óculos.
Mirando a rua e sempre desviando o olhar do interlocutor, Nunes rememora o primeiro emprego numa alfaiataria e lavanderia, a Cisne Branco. Sob a as ordens do Seu Vasco, o dono, pregou os primeiros botões e consertou as primeiras peças de roupa. Inicialmente, apenas calças. Com alguma saudade, fala dos enganos cometidos, condição imposta pelo tempo para aprender a função. “Em qualquer profissão a prática faz o conhecimento. É como um motorista que das primeiras vezes sai barbereando. Hoje, chega um cliente aqui e já sei mais ou menos a roupa que cabe naquele corpo”, assegura. E complementa, segurando o riso: “Errei, barbaridade. Na época em que eu comecei era bem diferente. A calça tinha que ficar bem justa, junto da perna. Certinha no corpo”.
De vocabulário híbrido – repleto de expressões tradicionais da terra de Bento Gonçalves, mas com um resquício visível de sotaque catarinense – ele calcula que já tenha atendido mais de 13 mil pessoas na Alfaiataria Nunes – desde 1984, quando passou a trabalhar com o conjunto completo: paletó e calça. O número não diz respeito somente a vendas. Estão contabilizados também aluguéis de ternos e adereços individuais, como gravatas, sapatos e cintos.
A menos de um quilômetro dali, um senhor de 60 anos brande a navalha pacificamente todos dias para apanhar o ganha-pão. Lorival Paz há 38 anos atua como barbeiro. Desempregado quando chegava à idade adulta, procurou guarida profissional em um curso oferecido pelo Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), em Porto Alegre. Foi lá que o seu instrutor sugeriu o nome que até hoje ilustra a placa que identifica e denomina a sala de trabalho: Salão Fígaro. Inspirado na ópera O Barbeiro de Sevilha, que celebrizou o colega de função reconhecido mundialmente.
Na sala de tamanho reduzido, cerca de 12 metros quadrados, Lori – apelido cunhado pelos mais chegados – construiu uma extensão de sua casa. Além da cadeira tradicional de barbeiro, há uma geladeira e dois confortáveis sofás. Espalhados pelas paredes, quadros com as grandes equipes da história do Internacional, time do coração. Esse ambiente transforma o salão num catalisador de amigos, segundo conta: “Muitas vezes os clientes me procuram apenas para conversar, pedir conselhos”.
Do local onde passou um terço das últimas quatro décadas, ele conseguiu prover o sustento da família e adquirir o patrimônio do qual tanto se orgulha. Casa própria, automóvel e a faculdade de Direito da filha Loriane. Tudo conquistado com a média de 250 clientes mensais, conforme contabilidade sua. E o segredo para a longevidade profissional é tão simples quanto umedecer um rosto com espuma de barbear:
– Respeitar o cliente. Entender o gosto dele. Muitas vezes não é aquilo como a gente quer. Têm clientes que tu sabes que está fazendo um serviço que não é o melhor, mas é a exigência dele – ensina. E completa, comentando o caso do dono de um ferro-velho de sua cidade, já falecido. Seu Ariovaldo fazia questão de aparar o cabelo como se fosse nos moldes de um penico, como um índio. O que lhe valia o pejorativo apelido de Juruna. Ele não ligava nem um pouco. E Lori sempre assentiu ao desejo do cliente. – Se tu quiser sugerir um serviço a teu gosto, tu podes até perder o cliente – adverte.
O viaduto do tempo
O viaduto Otávio Rocha, na avenida Borges de Medeiros, em Porto Alegre, pode ser apreciado como uma ode às décadas passadas. Numa rápida caminhada sob seus desbotados pilares chega-se a essa conclusão. Afora as pichações de frases como “O imperialismo é um tigre de papel” ou “Viva a heróica resistência iraquiana”, que reportam o passante para os dias atuais, o local é habitado, sobretudo, por relojoeiros grisalhos, comerciantes de lojas de vinis tão antigos quanto a mercadoria com a qual trabalham e, volta e meia, por um mendigo cocho de dorso nu que cantarola sucessos antigos de Roberto Carlos, com a voz arranhada pelo álcool, atrás de algumas moedas.
Mas um rosto jovem destoa dos demais. Seu dono é Jader Pontes, 36 anos. Proprietário de uma sapataria de nome curioso e pouco criativo: Sapataria. Em busca de uma renda maior, aprendeu o ofício com o sogro há oito anos. De cabelos ainda pretos, com raros fios brancos nas têmporas, longilíneo e de fala pausada e baixa, Pontes enumera os predicados indispensáveis para um bom sapateiro. “É necessária muita paciência. Preciso parar e pensar bastante antes de começar o trabalho”.
Entre lixadeiras, máquina de costura, facas, colas – todos materiais utilizados no trabalho – e centenas de pares de calçado que abarrotam o pequeno espaço comercial de sua posse, Pontes garante que a única característica que não compõe seu dia-a-dia é a rotina.
– O serviço nunca é igual. É só olhar os pés das pessoas. Cada um carrega algo diferente. Não é como trocar um pneu de carro – diz o sapateiro, debruçado no balcão de atendimento e acompanhado por uma plaqueta branca com letras negras pregada na parede ao seu lado, de mensagem clara e direta: serviço com 50% de sinal.
Driblando o abismo da extinção
O mesmo Senac que capacitou o barbeiro Lorival na década de 60 continua lançando milhares de profissionais no mercado de trabalho todos os anos. Entre faculdades, cursos livres e cursos técnicos. Esses últimos ilustram a transformação sofrida nos quatro decênios que passaram. Aqueles de cunho artesanal, como a barbearia, foram suprimidos por aulas de informática, turismo, comércio exterior, enfermagem, entre outros.
Para os trabalhadores não letrados, resta a criatividade para perenizar a atividade. Os engraxates do centro de Porto Alegre são exemplos disso. Há 12 anos uma associação foi criada para defender os direitos daqueles que sobrevivem da digna servilidade de lustrar o sapato alheio. Os 47 associados já conseguiram vitórias robustas desde então. Cada um labuta hoje em dia com o ponto definido – espalhados pela Praça da Alfândega e as avenidas Otávio Rocha e Borges de Medeiros –, sob uma armação azul que comporta a cadeira para o cliente, um espaço para reservar o material de trabalho e um teto providencial para os dias mais cinzas e chuvosos.
Paulo Lopes, 63 anos, é o secretário da entidade. Há 18 anos vivendo da graxa, ele comemora as conquistas da categoria. Até ser determinado o local onde cada engraxate deveria atuar, Santos conta que vagava pela Praça da Alfândega em busca de clientes. Foi numa dessas buscas que arranjou um entrevero dos brabos.
Logo que terminou um serviço, enquanto organizava seu material, viu o cliente ser assaltado sob seus olhos. Esperou alguns dias até reencontrar o autor do roubo. Ao reparar que ele caminhava despreocupado pela praça, Santos sacou o taco de madeira escondido entre seus pertences e desferiu algumas pancadas. Incomodou-se com a namorada do agredido, mas limpou a consciência.
– Dei três cacetadas no lombo dele. Mas ele não aprendeu. Voltou para assaltar no dia seguinte e pechou com um policial – relata concentrado o negro corpulento de cavanhaque, que não aparenta já ter ultrapassado os 60 anos. E acrescenta: “O malandro levou um tiro no joelho e ficou aleijado. Vagou por uns tempos por aqui e desapareceu de vez”.
Essa história retrata a obsessão de Santos com a satisfação do cliente. Seja advogado, médico, bancário ou de ocupação mais humilde. “Credibilidade. Isso é tudo no meu emprego. É preciso respeitar para ser respeitado”, afiança. Mas o senhor consegue sobreviver com a renda que tira aqui? Ele sorri com o canto dos lábios, gesticula com as mãos para o interlocutor se aproximar e fala como se segredasse algo:
– Esse é o melhor serviço da minha vida. Garanto uma grana boa e ainda posso bater papo enquanto trabalho. É o melhor serviço do mundo – sussurra o ex-caminhoneiro que hoje lucra R$ 50 diários na arte de fazer brilhar calçados.
As mãos que pariam rebentos eternizadas em livro
Elas trouxeram muitas vidas ao mundo. Com ferramentas precárias, se comparadas com o aparato tecnológico do qual dispõem os médicos nos dias de hoje, as parteiras faziam de uma tarefa árdua o exercício de uma vocação. Anteciparam os obstetras com a inclinação natural que a mulher carrega para a maternidade. E mesmo que sobrevivam hoje apenas em cidades interioranas ou em remotos rincões, elas já estão eternizadas.
O livro As Parteiras, de Elma Sant’Ana, registra a história de centenas de brasileiras que dedicaram suas vidas a trazer ao mundo rebentos chorosos recém desgarrados do ventre materno. E das linhas da autora recende o universo de estradas de chão, de imensas distâncias sendo percorridas pelas profissionais do parto, em carroças alquebradas ou mesmo no lombo de cavalos, para cumprir sua missão: “As parteiras ajudaram mães aflitas a ganhar seus filhos em locais distantes de qualquer recurso da Medicina. A cena se repetiu por décadas: mulheres, munidas de sua maleta, tesoura e muitas vezes levando o rosário e a imagem de Nossa Senhora do Bom Parto (…) Fizeram jus ao ditado “mais conhecida que parteira de campanha”, disserta Elma.
Mesmo caindo no ostracismo da falta de estrutura e perdendo cada vez mais espaço para a segurança dos médicos, elas continuam na ativa, principalmente no Norte e Nordeste do País. Pesquisa realizada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) no ano de 2004 revelou que 918 parteiras atuam na região que encabeça o relevo nacional. E contribuem para a ocorrência de 88% de partos normais por lá. Reduzindo a taxa de 15% de cesarianas, considerada como aceitável pela entidade internacional, para apenas 12%.
Guilherme
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