Desde a partida trepidante contra o Uruguai, desde aqueles 2 a 0 pelas Eliminatórias no Maracanã, que embriagaram os brasileiros num êxtase há muito esquecido em Copas, um herói fora forjado, aclamado e eleito por antecipação: Romário. Faltava para mim, ainda ignortante sobre o futebol internacional nos meus nove anos de vida, definir com clareza em quem serviria confortavelmente a vil fatiota de vilão. Havia Maradona, mas um segundo raio cair consecutivamente no mesmo lugar em Mundiais seria uma aberração. Havia Bergkamp, mas sem o brilhantismo que o papel reivindicava. Havia Stoichkov, companheiro de Romário no Barcelona, mas os compatriotas vedavam, aparentemente, maiores ambições. Restou a um carcamano, cujo olhar oblíquo pouco sugere sobre seu caráter, porém denunciado por cavanhaque e mullets peculiares e arcaicos – como qualquer vilão que se preze deve ser – encarnar a antítese do atacante brasileiro: restou a Roberto Baggio.
Como qualquer início de Copa em que a Itália termina por disputar o título, as primeiras partidas em 1994 impunham obstáculos herméticos, passavam a impressão de uma Azzurra de pouca força, cuja vida nos Estados Unidos seria extinta em prematuros três jogos. Tudo isso enganaria qualquer pessoa que não conhece a história carcamana em Mundiais. A derrota para a Irlanda, a vitória esquálida contra a Noruega, o empate inesperado com o México e o terceiro lugar e uma classificação em posição constrangedora à segunda fase nada mais representavam do que a consagração de uma tradição de décadas, que enreda os italianos em problemas de lesão, troca de jogadores e até sistemas táticos em meio à competição, até que os ajustes aconteçam e o espírito copeiro se apresente, contundente.
Roberto Baggio foi, há 15 anos, o símbolo desta metodologia insonsciente e vencedora. Chegara à terra do Blues com problemas físicos, obrigado a cobrir a coxa com uma faixa para atenuar as dores. Também por isso, passou a ser decisivo somente a partir das oitavas de final, contra a perigosa, porque irresponsável, seleção nigeriana. O temor se confirmaria com a abertura no placar pelos africanos e a permanência da vantagem ate os 43 minutos do segundo tempo. Baggio, então, empatou o jogo e marcou, já nos minutos aflitos e periclitantes da prorrogação, o gol da vitória. A Itália reafirmava seu protagonista maior. Os brasileiros ganhavam, ainda sem saber, um vilão.
Na partida seguinte, no clássico europeu contra a Espanha, ele decidiria novamente. A despeito dos erros de arbitragem que negligenciaram uma agressão de Tassoti no espanhol Luis Enrique – inclusive ignorando o rosto do meia, banhado com o próprio sangue –, Baggio recorreu aos minutos finais para classificar seu país, anotando aos 42 minutos. E para espanto de todos, inclusive meu, já consciente de que só derrotando aquela camisa azul tão pesada aos adversários, aquele jogo lento, progressivo e matreiro nascido em uma Bota gigante lá do velho continente, seríamos campeões, o mesmo Roberto deixou para trás a Bulgária, sensação da Copa e capitaneada pelo artilheiro, canhoto e mestre em bolas paradas, Stoichkov, com mais dois gols. Eram cinco tentos decisivos. Eram apenas três jogos.
A final chegara, e confesso que não pude assistir ao jogo pela bruta ignorância de minha mãe, que comprou passagens de avião e me fez embarcar e flanar pelos ares de nosso planeta justamente nas horas em que eu veria pela primeira vez em tempo real um brasileiro erguer a Copa do Mundo. Não vi. Claro que, ao regressar ao país, avermelhei os olhos de tanto rever lances, teipes, melhores momentos, entrevistas e sobretudo as penalidades daquela decisão. E soube, o que já era um alento, pelo diligente piloto do avião, que Baggio errara o pênalti, já no momento em que o fez.
Mas a imagem que mais me impressionou daquela final, e também a que confirma e polariza a condição heróica de Romário e vilã ou anti-heroica de Baggio, ocorreu antes de as duas seleções entrarem no gramado. O documentário Todos os Corações do Mundo, de Murilo Salles, em determinado momento flagra um instante curioso em que o 11 brasileiro é perscrutado pelo 10 italiano. Romário naquele balanço displicente que só os cariocas têm, que ele deve promover tanto no limiar de uma decisão mundial quanto nas peladas na beira das praias fluminenses, mirando aquele vazio móvel que miramos em momentos de concentração. Baggio, ao contrário, não desprega os olhos de seu antagonista: quase sem piscar, decorando cada movimento, como se tentasse desvendar nos minutos derradeiros antes da bola rolar algum segredo que o aquecimento revele.
E naquele olhar míope de Charles Bronson, naquela veneração talvez insonsciente, naquela hora Romário ganhou mais trinta centímetros e se transformou num gigante pelo qual Baggio jamais passaria. Ali e, claro, no restante do jogo, nas cobranças desperdiçada por um e assinalda pelo outro, na eleição de Melhor do Mundo vencida pelo brasileiro, no restante das carreiras de ambos. Baggio ainda se redimiria quatro anos mais tarde, marcando na decisão de pênaltis contra a França e retirando os 150 quilos que carregava no lombo desde 1994.
A Copa dos Estados Unidos era do Brasil, era minha. E a final me provou que, diferentemente da vida, o futebol é refém de maniqueísmos, de herois e vilões. Algo que é sempre melhor aprender vencendo. Algo que os italianos da minha geração experimentariam somente doze anos depois, na Alemanha.
Guilherme Lessa Bica
Bala véio!
Já viu o dvd da PLACAR do Baggio? Bah, sensacional! Ele fez gol em 90 (um golaço, aliás), 94 e 98, caso raro de atacante que fez gol em três copas seguidas.
Em 94 o melhor jogo dele foi contra a Bulgária, sem dúvidas. 2 gols numa semifinal de Copa é serviço para craque!
E contra a França em 98 ele quase sacramentou a vitória, numa bola que o Barthez ficou só torcendo pra não entrar… Na entrevista do dvd ele fala desse lance do pênalti de 98, que só ali ele conseguiu tirar o peso das costas. Mas mesmo assim dá pra sentir que quando fala do assunto, o ar pesa uma tonelada perto dele.
Roberto Baggio, Il Codino Divino.
Se fosse no Brasil o nome dele seria algo como “Beto Cabeleira” ou “Roberto Cavalo”!
Abraço!
ahuauhahuhauuahhuahuhua… Roberto Cavalo, bá, fazia tempo que não lia esse nome.
Pois é, o cara jogava muito. Em 90, apesar do gol, ainda era reserva. Mas em 94 jogou demais.
E aquele França e Itália eu torci demais pra ele decidir, classificar e se redimir por completo. Uma pena.
Apesar disso, no final da carreira ele ainda jogou muito pelo Brescia, incomodou os grandes na Itália, já veterano e com os joelhos avariados.
Abraço.