Todos queriam ser Romário em 1994. Menos eu. Eu queria ser José Roberto Gama de Oliveira. Ou só Bebeto mesmo. Talvez pela educação que me incutia em conta-gotas na cabeça a idéia recorrente da humildade, do respeito e da harmonia entre todos no discurso familiar. Romário não encarnava nenhuma dessas premissas. Ele personificava – e ainda personifica – a antítese de todas elas. Bebeto sempre foi o exemplo a ser seguido. Mas, pra mim, era mais do que isso. Mais do que a postura de bom moço, o riso fácil de baiano, o cabelo penteado com retidão e o calção acima do umbigo – emprestando uns anos a mais a ele, num visual de aposentado precoce -, Bebeto era simples. E a simplicidade genial com que jogava enganou a muitos que o imputam um papel secundário na campanha do Tetra, ou na história do futebol mundial. Sem Bebeto, Romário teria suado um bocado a mais naquela Copa.
Em 1992 meu pai achou que eu tinha virado vascaíno. Fomos ao Rio de Janeiro, lembro de pouca coisa da viagem: encontrar o ainda jogador Júnior, do Flamengo, pegando uma praia em Copacabana e cumprimentando simpático a todos que o abordavam, com aquele mesmo bigode – ainda negro – e a mesma fala mansa e furtiva de carioca; visitar o Maracanã vazio e escutar o silêncio ensurdecedor de um gigante que dormia; e, o grande feito: comprar a camisa sete do Vasco: a do Bebeto. É óbvio que permaneci gremista. Embora a admiração pelo Bebeto também seja perene.
E dois anos depois ela foi confirmada com o título nos Estados Unidos. O jogo que mais me emocionou naquela Copa foi o das oitavas-de-final, contra os donos da casa – não pude assistir à final, por motivos que conto numa próxima crônica. Ambiente inóspito, estádio apinhado de tios sans sedentos por nos provar que nós não éramos superiores em nada em relação a eles – nem no futebol -, a partida marcada para um feriado nacional, quatro de julho, que eles comemoram como se fosse o dia da invenção do mundo e, para acrescentar uma pitada a mais de dramaticidade, a cotovelada do Leonardo no Tab Ramos, e a justa expulsão do ainda lateral brasileiro.
O Brasil com dez jogadores. Aldair e Márcio Santos passando trabalho. O estádio em polvorosa. A essa altura eu já lamentava ter que esperar mais quatro anos pra ver meu país campeão mundial, já me preparava pra prorrogação, pro calvário dos pênaltis. Aí surgiu quem deveria surgir. Romário trotou alguns passos na intermediária dos estadunidenses, levantou a cabeça e acionou Bebeto. O domínio e a conclusão do atacante brasileiro foram tão precisos e cuidadosos quanto o penteado e o ajuste do calção sobre o próprio umbigo. Aquela cena clássica da bola encontrando a garrafa de água do goleiro Tony Meola – sempre achei que o Bebeto mirou na garrafa – e do encontro entre Bebeto e Romário ao lado do gol, do abraço consagrador. Estava afirmada a maior dupla de atacantes que minha geração viu jogar. E eu voltava a argumentar com todos a minha volta que Bebeto era melhor que Romário.
Bebeto nunca foi melhor do que Romário. Mas eu achava. Tinha nove anos e queria ser ele. Mas isso não é o mais importante. Fato é que eles se complementavam em campo. Bebeto tinha a humildade que era escassa em Romário. Romário esbanjava a ousadia árida em Bebeto. Um foi rei em Barcelona foi escolhido o melhor do mundo. O outro penou na segunda divisão da Espanha com o La Coruña, e, embora seja o grande responsável pela ascensão nacional e internacional (anos depois) do time da Galícia, não ganhou o campeonato espanhol. No futebol, muitas vezes, como no rock’n’roll e em outras atividades subjetivas, a postura pode determinar quem é o melhor, quem vence.
Mas pelo menos num fundamento Bebeto era superior a Romário, e não encontrou equivalente no futebol mundial: o voleio. Sempre que seu nome é lembrado, a imagem do gol que definiu a vitória por três a dois contra a África do Sul, num amistoso em Joanesburgo, em 1996, e autorizou o treinador Zagallo a experimentar o aviãozinho ridículo da vingança, inclusive invadindo o gramado, assalta a cabeça de todos. Embora não tenha feito tantos gols dessa maneira, Bebeto repetia o movimento à exaustão nas partidas; e foi aquele que executou essa acrobacia com maior perfeição nos gramados: esse é o tipo de lance que independe do gol para ser belo: pela dificuldade, pela plástica e pela excepcionalidade envolvidas.
Bebeto foi herdeiro de Garrincha, embora não compartilhassem características físicas e estilo de jogo: o camisa sete cujas assistências sempre foram mais valorizadas que os gols. Mesmo que seja um dos maiores artilheiros da história da seleção brasileira, com 52 gols em 88 jogos. Participou de três Copas do Mundo, ganhou duas medalhas olímpicas e alguns prêmios como goleador do Brasileirão e do Campeonato Espanhol. Mas tenho certeza que o que deve emocioná-lo é a certeza de que alguns garotos em meados da década de noventa resistiram à badalação sobre Romário, à malandragem, inclusive o talento superior do carioca; e preferiam imitar a genialidade simples e vestir a camisa sete, aparar o cabelo com cuidado e perfeição e ajeitar o calção acima do umbigo, feito aposentado precoce, mas com energia suficiente para arriscar uns voleios vez em quando.
Foto: sporting-heroes.net
Guilherme
Bebeto era podrão.
Bom era o Fabiano cachaça.
Esse sim, O ÍDOLO.
E sempre será.